sábado, 16 de fevereiro de 2008

Nevoeiro e Espaço Público ou a Ausência de Espaço Intermédio

"Como é possivel?
É possivel porque as consciências vivem no nevoeiro.
O que é o nevoeiro?
Ele é a causa da não-inscrição ou esta existe por efeito daquele? É impossível responder a esta questão. Existiria antes uma dupla causalidade recíproca a partir de um trauma «inicial», ele próprio resultado da convergência e da acumulação de muitos pequenos acontecimentos traumáticos que fugiram à inscrição (histórica, social e individual). Qualquer coisa como um Alcácer-Quibir que se recusa a aceitar e de onde nasceu o nevoeiro. Não o da lenda, que é futuro e lugar de epifania, mas uma neblina presente que se apodera do interior da consciência e a rói, sem que ela dê por isso. Um «branco psíquico», ou melhor, uma multiplicidade de brancos psíquicos atravessam a consciência clara, de tal maneira que, sem que ela se aperceba, formam-se as maiores obscuridades e confusões. É o branco psíquico inconsciente esfarelando, fragmentando a consciência em mil bocados, cada um deles, no entanto, plenamente consciente no seu campo próprio.
(...)
Não há espaço público porque este está nas mãos de umas quantas pessoas cujo discurso não faz mais do que alimentar a inércia e o fechamento sobre si próprios da estrutura das relações de força que elas representam. Os lugares, tempos, dispositivos mediáticos e pessoas formam um pequeno sistema estático que trabalha afanosamente para a sua manutenção.
A situação não se apresenta com melhor aspecto noutros sectores da vida pública portuguesa. Apesar das exposições, do seu número e da sua importância, a arte não tem espaço público.
(...)
As pessoas vão às exposições e aos espectáculos, «gostaram» ou «não gostaram», e voltam para casa, quer dizer, para outras preocupações. A crítica sofre idêntico destino: se há efeitos, se há feedback, ficam no fundo dos espíritos, no segredo das almas solitárias.
(...)
A Arte é uma questão privada. Não entra na vida, não transforma as existências individuais. Expõe-se em vitrinas (...).
O espaço público, no sentido em que empregamos esta expressão algo inadequada, não é o lugar da «opinião pública» nem de manifestações colectivas, políticas ou outras. Mais mesmo do que um espaço de comunicação, é um lugar de transformação anónima dos objectos individuais de expressão. É a palavra «público» que não convém: porque esse espaço de transformações contém zonas de sombra, pontos imperceptíveis de ligação de forças, linhas invisíveis que traçam trajectos de energia. Este espaço «público», sendo aberto, não se expõe necessariamente à luz.

A sua característica primeira é a de constituir uma exterioridade, um «fora» para os sujeitos (individuais ou colectivos) que nele penetram. Na sociedade francesa, por exemplo, um escritor publica um livro que entra no espaço público e imediatamente sofre um tratamento múltiplo, as mais das vezes imprevisível, que o transforma. As leituras diferentes ou divergentes de que é objecto, as maneiras como vai de um a outro leitor, de um a outro crítico, como o seu sentido se expande em várias direcções, como o «público» se apodera de alguns dos seus aspectos e negligencia outros, o que ele traz de novo à linguagem (literária e não só), tudo isso ultrapassa em muito o que se costuma chamar a «recepção» de uma obra, e alcançando uma zona transliterária da «vida» forma o conjunto dos efeitos do espaço público sobre um livro - ou, mais geralmente, sobre um objecto de arte, ou sobre uma ideia lançada e apanhada no circuito dinâmico das forças desse espaço.

Aí, o livro ou a obra de arte perde a sua marca de origem, a sua «função-autor» dissolve-se, o objecto ganha um anonimato que faz com que já não pertença a um, mas simultaneamente a todos e a ninguém. Quando é devolvido ao seu autor está irreconhecível, transformou-se consideravelmente. Ganhou poderes insuspeitados, forças desconhecidas atravessam-no. Diz-se então que houve «desnaturação», «desfiguração» etc., ou, pelo contrário, «revelação da sua essência», «descoberta do seu sentido autêntico». Expressões que pressupõem sempre uma essência eterna ou uma «verdade essencial» da obra. Ora desta, o que mostra o espaço público é o seu poder de se transformar, de devir, de se tornar múltipla através de uma infinidade de forças. É essa a sua «verdade essencial» e é o espaço público que a põe à prova e a revela.

Neste sentido, ele constitui o «fora» de um dentro social e psíquico que se arrisca sempre, nas sociedades fechadas a enquistar. Fora absolutamente imprevisível que existe por si (e forma no entanto o fora daquele dentro específico), pensa por si, metaboliza o que lhe vem do interior e reflui intempestivamente sobre este último. Espaço de dessubjectivação: o autor das metamorfoses que a obra sofre não é um sujeito, mas uma espécie de máquina anónima de devires.

Por isso o espaço público torna-se a condição imprescindivel para que o «dentro» respire. Qualquer coisa deve sempre vir de fora, de um fora ilimitado e intensivo, para que o dentro se possa exprimir. (...) A maior gratificação que pode receber um artista é saber que a sua obra entrou no espaço anónimo em que, transformando-se multiplamente, vai fazer nascer outras vozes, outras escritas, outros pensamentos. Ter a felicidade de saber que a sua obra deixou de ser sua, precisamente pelo seu imenso poder de devir-outra.

Vê-se que o espaço público falta cruelmente em Portugal. Quando há diálogo, nunca ou raramente ultrapassa as «opiniões» dos sujeitos bem personalizados (cara, nome, estatuto social) que se criticam mutuamente através das suas crónicas nos jornais respectivos (ou no mesmo jornal). O «debate» é necessariamente «fulanizado», o que significa que a personalidade social dos interlocutores entra como uma mais-valia de sentido e de verdade no seu discurso. É uma espécie de argumento de autoridade invisível que pesa na discussão (...). Mais: a condição de legitimação de um discurso é a sua passagem pelo plano do prestígio mediático - que, longe de dissolver o sujeito, o reforça e o enquista numa imagem «em carne e osso», subjectivando-o como o melhor, o mais competente, o que realmente merece estar no palco do mundo.

A não existência de um espaço anónimo de devir das ideias e das obras retira, além do poder de criação, o dispositivo necessário (a mediação) que dessubjectiva o discurso e impede o choque dos «sujeitos». Se, na maioria dos casos, a crítica, em Portugal, descamba no insulto pessoal, no embate imediato de dois «fulanos» - ou no elogio sobrevalorizante - é por ausência de um terceiro termo que medeie a relação dos dois interlocutores. O elogio desrealizante tem idêntica origem: agora não é o choque que se procura, mas o seu avesso, a osmose admirativa máxima, sem mediação, com o outro - duas vertentes de um mesmo tipo de relação.

Muitas consequências derivam deste funcionamento do espaço (não) público, por ausência do plano anónimo de circulação de forças.
(...)
O espaço público deveria ser aberto, mas fechando-se, limitando-se, permite que o telespectador, o ouvinte e o leitor sejam imadiatamente absorvidos pela sombra branca ou dupla realidade com que se deparam. Por um lado estão ali, o mundo agora, o seu país, a sua cidade ou a sua aldeia, numa abertura virtual de imagens sem fim; por outro é apenas aquilo, com o sentido com que deve ser já pensado, as notícias, os comentáros semanais dos comentadores, os pensamentos que confirmam o meu pensamento antes de o ter, a minha existência reduzida a uma massa pastosa que engole as imagens e nunca treme realmente com o que vê ou com o que lê.

É desta forma que a minha vida se insere na vida do mundo, não se inscrevendo nela. O espaço público, essencial à democracia, foi-me roubado. Roubado pelo sistema partidário, pelo sistema representativo, pelo sistema mediático transcendente. De uma vida nada se inscreve, nela nada sucede por efeito dos «acontecimentos» mundiais ou nacionais que o espaço dos média «reportam» ou «comunicam». É, pois, um acontecimento «para se comunicar» não para eclodir no curso da minha vida. Nada mudou. A sombra branca estende-se e cobre o mundo inteiro que é Portugal."

GIL. José. (2005). Portugal, Hoje - O medo de exisitir. Lisboa: Relógio D'Água Editores. pp.18,19, 26-31, 34,35.

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